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CIDADE DE DEUS É TODA PERIFERIA E MANÉ GALINHA É TODO PRETO SONHADOR: O MITO DA MERITOCRACIA NAS FAVELAS DO BRASIL

(Foto reprodução: cdn.brasildefato.com.br)

Falácia perpetuada desde meados do século XIX na França, o conceito de meritocracia foi cunhado por Michael Young, partindo de uma visão futurista acerca da sociedade, na qual inexistia desigualdades e todes eram julgados unicamente por seus esforços e potencialidades. Essa mesma visão ganhou um grande destaque aqui no Brasil em um contexto de divisão politica que ocorreu entre o  final do Governo Lula e que prevalece até os dias atuais, sendo então essa palavra usada para fundamentar os mais diversos argumentos, os quais em sua maioria, não coincidentemente, partem de pessoas brancas que se consideram de “classe média”.

Pensar a ideia de meritocracia em um país como o brasil, no qual se tem um cenário social onde grande parte da população vive em situação de pobreza ou abaixo dessa linha, além de ser extremamente contraditório, é perverso. Tal questão se dá pelo fato de que as possibilidades de ascensão social para a grande parte da população pobre, são quase inexistentes, o que se alia à divisão racial existente, na qual mesmo que hajam duas pessoas igualmente pobres e com as mesmas potencialidades, porem de diferentes tons de pele, disputando uma vaga de emprego, a pessoa escolhida será a que mais se aproximar do "branco". Ou seja, a população negra tem mais chances de vivenciar a pobreza extrema. Os 500 anos de escravização ainda se perpetuam socialmente.

(Foto reprodução: Culturagenial.com)

“Servi no exército, fui o melhor... e agora estou aqui.”
"(...) eu não sou bandido”

A história de Mané Galinha (Manoel Machado) apresentada no atemporal filme “Cidade de Deus”, juntamente às demais histórias, configuram o cotidiano vivenciado pela maioria da polução residente nas periferias – não coincidentemente pessoas negras­- do Brasil. No filme baseado em fatos reais, Mané Galinha é um cobrador de ônibus que já serviu ao exército e segundo ele mesmo, teve destaque como um dos melhores. Ao longo de sua história, ele aparenta ter valores que transcendem a realidade do crime e tráfico à sua volta, de modo que sempre demonstra acreditar na educação como melhor arma. Mas diante das adversidades que atravessam o seu destino, ele se vê direcionado a integrar as más estatísticas.

A disseminação do mito da meritocracia no Brasil possibilita o desenvolvimento da visão deturpada de que se pode “vencer na vida” unicamente por merecimento, ou seja, a pessoa que trabalha 10 horas por dia para ganhar um salário mínimo possui as mesmas chances de ascender socialmente que uma pessoa que trabalha 5 horas por dia em uma empresa familiar e “conquista”  o triplo do salário mínimo ou mais mensalmente. É também esse mesmo ideário que provoca um cenário de adoecimento e sofrimento para a população negra uma vez que, mesmo inconscientemente, há uma adesão dessa ideia e, querendo ou não, é o que motiva os inúmeros "corres" diários, na perspectiva de que só assim, correndo incansavelmente, se torna possível prosperar.


(Foto reprodução: Culturagenial.com)

“No primeiro assalto, Mané Galinha salvou a vida de um trabalhador. No segundo assalto, Cenoura salvou a vida do Mané galinha e ele entendeu que pra toda regra há uma exceção. No terceiro dia de assalto, a exceção virou regra.” 

Fundamentando-se na meritocracia, oculta-se então as adversidades diárias às quais é relegada a população periférica, do seu nascimento à sua morte, da falta de saneamento básico às mãos armadas. Para além disso, as guerras internas propiciadas por disputas de poder no tráfico financiado por quem também é responsável pela (in) segurança pública, é também reflexo desse discurso meritocráta e que leva a um contraditório amadurecimento precoce de crianças negras.

                    “Eu fumo, eu cheiro, já matei e já roubei. Eu sou sujeito homem.”

                                                                                                                               -Filé com Fritas

A adultização precoce, os caminhos trilhados e obstáculos encontrados viabilizam que as portas para o mundo do “crime” estejam sempre abertas, de forma que qualquer “deslize” leve até ele, seja qual for o objetivo e a idade, como no caso de Mané Galinha. Diante disso, a ideia de meritocracia se torna inconcebível e as exceções passam a ser pessoas que não se tornaram estatísticas, por isso cada ano de vida é motivo de alegria.


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