Por Eduardo Camargo
“E quem sabe se as flores que meu sonho ensaia
Não achem nessa gleba aguada como praia
O místico alimento que as farás radiosas/
Ó dor! O tempo faz da vida uma carniça,
E o sombrio Inimigo que nos rói as roas
No sangue que perdemos se enraíza e viça!" - Charles Baudelaire, O Inimigo, As Flores do Mal
“A rotina é composta de vários porquês
Raramente é bela como um buquê de lírios
Raramente é bela como buquês de lírios
Delirante vida onde sonhos são interrompidos por leis do acaso
e o desejo de vitória nasce depois de um fracasso”
- Victor Xamã, Eu Chorei nas Margens do Rio Negro
1857, França. Paris está passando por um processo absurdo de industrialização e modernização, responsabilidade do prefeito do departamento Sena, Georges-Eugène Haussmann, durante o império de Napoleão III. Os hábitos estavam mudando e o cotidiano europeu passava, então, a ser caracterizado como urbano. A fumaça de fábricas e carros, a construção de aquedutos e esgotos, o lixo através das ruas eram todos elementos de convívio. As décadas que antecederam essa época foram marcadas pelo crescimento populacional da cidade e um empobrecimento da classe trabalhadora que vivia em condições alarmantes, sendo que revoltas foram realizadas nos anos de 1830, 1831, 1832, 1835, 1839 e 1840.
2017, Brasil. A população do país passa de 207,7 milhões. O suicídio é a quarta maior causa de morte entre os jovens. 12,4% da população está desempregada. O governo tem apenas uma aprovação de 6% da população.
No primeiro dos anos citados, no dia 25 de junho Charles Baudelaire publicava “As Flores do Mal”. Seis poemas foram censurados e o seu autor foi multado. Seis anos depois, em A Vida de um Pintor Moderno, Baudelaire iria cunhar o termo “modernidade”, referindo-se a época na qual vivia e estabelecendo uma postura artística que buscava captar poeticamente a experiência do cotidiano nessa sociedade que acabava de se estabilizar com auxílio dos primeiros passos da 2ª Revolução Industrial. Sua defesa não era para uma arte que apenas imitasse a realidade, mas que conseguisse capturar a sua experiência.
No ano passado o Brasil vivia um dos seus momentos mais intensos dos anos recentes. Desde o início de setembro de 2016, sua população vivencia uma grande polarização causada pela instabilidade política. Propagada principalmente nos núcleos da universidade, as políticas identitárias tem encontrado forte resistência por grande parte da população. Esse ano, o país passa por eleições e tenta se recuperar economicamente. Se do início até perto do final dos anos 2000 vivenciamos um cenário otimista há como muito não se viu por aqui, o mesmo não pode ser dito de 2010 pra frente. Se havia o início da construção de uma ponte para a mudança, essa ponte foi incendiada e agora observamos os esforços e promessas que surgem em meio à descrença e a fumaça.
Por mais distintas que as situações entre os dois países sejam, por razões históricas claras, e sem a ambição de uma comparação direta entre os dois, elas foram capazes de provocar sentimentos semelhantes: medo, confusão, insegurança e instabilidade. O cenário no qual o Brasil se insere no momento pertence à uma situação mais abrangente. Ainda sim, dentro de todas as especificidades sócio-culturais do nosso país e refletindo esse tempo, emerge um trabalho que guarda semelhanças não apenas em espírito, mas em relação a sua forma com essa visão de modernidade, atualizada à situação contemporânea. Com as devidas idiossincrasias em conta, também vivemos em um tempo de mudança e incerteza.
“Verde Esmeralda, Cinza Granito” configura como um dos melhores álbuns do ano passado, ao lado da obra de proporções épicas de Don L e os lançamentos de Edgar. Construído em um binômio do verde da natureza contrastado ao cinza dos prédios, o álbum revela um grande leque de variações entre um extremo e o outro, transitando entre os dois pólos, o que nos permite nos aproximar um pouco mais da identidade do rapper pelo seu caráter multifacetado. Expandindo o que já estava presente no denso Janela, o trabalho de Victor Xamã é como um respiro de alívio em meio a urgência da atualidade, em certos momentos torna-se um grito contra o atual estado das coisas, em outros, beira à crise e o cansaço. É nessa tensão que a obra consegue aproximar o ouvinte, nos apresentando olhares breves à calma e a paz que se chocam contra sonhos, ambições e as dúvidas que surgem em meio ao trajeto. Disso nasce uma obra diversa, que pela especificidade da sua construção lírica (recomendamos o texto de análise sobre Emicídio que discorre um pouco acerca do conceito), apresenta uma visão madura perante um contexto no qual ser um artista autoral tem sido cada vez mais difícil e incerto.
O autor e crítico Walter Benjamin (1892-1940), um dos grandes estudiosos de Baudelaire, via no poeta não uma crítica engajada do seu período, mas o testemunho do esvaziamento de sentido na vida na sociedade moderna. Esse esvaziamento e alteração dos hábitos é uma das consequências das mudanças econômicas e tecnológicas daquele tempo. Se já era atestada a chegada de uma época na qual a experiência humana é vista como fugidia, rápida e fragmentada, então esses fatores são ainda mais amplificados com o desenvolvimento tecnológico e a chegada da internet. Octavio Paz (1914-1998), poeta e ensaísta mexicano, afirmou que os modernos nunca veriam a face do futuro, exatamente porque o seu presente privilegiou a novidade e a mudança, não dando espaço a um futuro. No nosso caso, um banco de dados enorme que nos permite receber notícias do mundo inteiro em tempo real provoca uma diluição do futuro, colocando-nos em um estado de eterna antecipação. Além disso, abre as portas a todo um passado (documentado) do qual o história se retroalimenta. Outro ponto, o da experiência que parece se perder em meio às máquinas, é somente ressaltado. O ambiente virtual passa a ser o espaço no qual a maioria das experiências é efetivada. O momento é tão efêmero que encontramos formas de documentá-lo de maneira minuciosa, usando aplicativos como snapchat, as stories do instagram e os vines. A publicidade e o marketing incorporaram as linguagens artísticas e a submeteram a seu uso. Qual é o lugar da arte, então, na nossa época? A arte, quando consumida de forma não casual, permite uma suspensão do frenesi do tempo contemporâneo. Oferece estímulos e uma certa quantidade de horas com as quais podemos contemplar, refletir e imergir - atividades cada vez mais escassas no cotidiano - em um universo arquitetado por outro indivíduo. Quando ela é realmente potente, consegue inclusive nos oferecer saídas, nem que sejam de nós mesmos.
O último ponto de interseção, que transpassa as semelhanças de contexto, entre as duas obras que eu gostaria de comentar antes de prosseguir a análise são dois conceitos complementares presentes em As Flores do Mal. São eles o spleen e o ideal. O primeiro refere-se a um estado de ânimo de tédio e de angústia, uma reação negativa à vida urbana e que resulta em comportamentos viciosos e de isolamento. Já o segundo são experiências de rememoração, com um caráter nostálgico e escapista, nas quais o eu-lírico descreve sensações plenas. A princípio, é fácil associá-los com o verde e o cinza e seus efeitos explorados no álbum. De fato, são em momentos nos quais geralmente Victor Xamã utiliza de metáforas, muitas advindas do imaginário da natureza, que descrevem situações de alívio, e é em ocasiões que parecem advir de um caos urbano, pontuados também por elementos naturais, que os momentos mais sombrios do álbum emergem. Ainda sim, o eu-lírico de Baudelaire tem uma reação de surpresa, exílio e comportamentos autodestrutivos. No caso do integrante do Qua$imorto, a insatisfação frente às barreiras que ainda persistem em relação ao controle do cenário pelo eixo transformam-se em motivações para as ambições, os sonhos e a vontade de se construir uma obra ainda mais significativa e que não se sujeita a convenções propagadas pelos artistas do mainstream e por algumas mídias. A postura de Xamã é ativa. Consequência ou lucro. No fim, tanto cidade quanto mata não são opostos que se anulam, mas que entram em equilíbrio e configuram a vivência do rapper.
“Eu sinto medo de mim quando penso em ter o mundo
Eu sou o encontro das águas, só vocês não observam
Um irmão queria um emprego, outro um amor sincero
Os dois precisam de dinheiro quem beirou a insanidade?”
Depois das reflexões de “Pescadores de Alívio”, que partem de uma analogia à rotina dos pescadores para versar sobre a busca por alívio e o caráter cíclico e transitório da vida, trazendo um olhar que passa tanto pelas incertezas como pela confiança, chegamos a um dos pontos altos do álbum. Se a música anterior é pela busca de conforto, aqui temos uma vontade ambiciosa, tanto de bens materiais como de alcançar uma felicidade e a dificuldade de ter os dois. O refrão que abre a fecha a música retrata bem essa ideia.
“Adepto” é uma das letras mais singelas do disco. Conseguimos nos aproximar de maneira mais concreta à vida de V. Xamã, com cenas com a sua mãe e com os amigos do Qua$imorto. Apesar de uma visão positiva, tanto o sample como trechos dão uma aura melancólica e quase nostálgica pro som. Uma das linhas recorre a um dos conceitos de Xamã Urbano, de Serge Kahili King, citado pelo MC em entrevista como o motivo para o seu vulgo. A linha em questão diz: “A realidade é o sonho e o sonho é a realidade, o sonho, mano”, que segundo Xamã é a mensagem principal do livro.
A partir de “Rupturas Internas”, acompanhado de um ótimo feat de Ian Lecter, o trabalho segue em uma coerência temática e sonora até “Câmaras de Vigilância”. Os primeiros sons falam do alívio, dos sonhos e da vontade de ter o mundo. Com exceção da primeira que alude a uma crise das quais você passa a madrugada acordado, as outras são todas exemplos de como e porquê o Norte merece estar na cena. Em um cenário saturado de ego trips e punchlines, a busca de V. Xamã não é sozinha ou apenas por si, mas abre caminhos para toda uma região ignorada por grande parte da população do sul e sudeste. Enquanto instrumentais nacionais buscam um padrão gringo, os traps orgânicos em “O Que Tu Queres de Mim” uma pergunta direta ao público, e em “Hey Joe”, som sobre o legado da música e quase ambientado em um filme noir, fornecem o clima perfeito pro braggadocious nada óbvio de V.Xamã. “Câmaras de Vigilância”, com participação de Luiz Caqui, é um aviso direto de que em 2018 o Norte não será barrado na cena.
- José Aldo
Após o miolo do álbum, que guarda os sons mais viscerais do artista, chegamos ao que eu vejo como o clímax, “Desenfreado e Tranquilo”, onde os pólos da natureza e do caos urbano são encarados como a própria ambivalência do MC. Depois da autoafirmação e confiança que acompanhamos até aqui e as inseguranças que surgem no meio do caminho, essa é umas das tracks mais honestas e que mesmo se erguendo nessa tensão, vai nortear o fim da obra tal a calma após a tempestade. Essa suavidade é transposta também pra próxima música, “Sonho Lúcido”, no qual o eu-lírico encontra por fim alívio e tranquilidade. “Garimpo”, a última música com versos, é acompanhada por Fernando Varios em um relato da ganância urbana se contrapõe aos últimos momentos de descanso.
“Verde Esmeralda, Cinza Granito” me remete à “Ruas Vazias”. Em 2007, Shawlin realizou um trabalho em que todos os versos desenhavam sua relação com a cidade, o que lhe permitiu ter uma grande possibilidade de temas. Victor Xamã faz algo semelhante, com a diferença que o próprio funcionamento da cidade é espelhado e incorporado na sua lírica, abordando temas que circundam nos mesmos assuntos porém de formas diferentes. No fim, o álbum narra os diferentes estados emocionais do MC, alcançando um ponto no qual essas dificuldades e ambições parecem alcançar os mesmos termos, com um som ao fim que nos faz pensar que apesar das nossas mudanças internas, muita coisa ao redor continua igual. Os pólos entram em equilíbrio para que encontremos uma vida plena. Há algo que muitos dos álbuns nacionais recentes tem guardado em comum, atravessando desde VE, CG até os álbuns de Froid, Baco Exu do Blues, Djonga e Don L. Essa semelhança reside no fato de que o grande conflito desses trabalhos não é tanto, ou em alguns casos não é apenas, com o mundo ao redor desses indivíduos, mas a grande trajetória é interna, na tentativa de uma autocompreensão que balança da ego trip até a autodepreciação. Essa alteração também foi presente na literatura. As narrativas épicas que contavam com jornadas fantásticas passam a ser a jornada de uma pessoa só, de alguém comum como eu e você. Conflitos pessoais por vezes tem a dimensão de um apocalipse, e a música é fuga.
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