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Sua opinião importa em debates sobre rap?





- por Arthur Venturi Vasen


                Hoje em dia, uma das coisas que mais tem incomodado o público antigo do rap nacional são pessoas que expressam suas opiniões nas redes sociais a respeito de novos lançamentos e até mesmo de sons consagrados. Quantos memes da página O Rap Nacional Me Levou ao Alcoolismo nos fizeram ficar na dúvida entre rir e chorar em prints onde os protagonistas afirmam com convicção que determinado MC da nova geração é a “evolução do rap” ou proclamando um novo artista como a substituição de outro consagrado, ou até mesmo questionando aquilo que até então era inquestionável como os trabalhos de 2Pac, Notorius B.I.G e até mesmo dos Racionais MC’s.

                Não que comentar trabalhos seja algo exatamente novo, mas o que choca são as opiniões muitas vezes rasas, poucas embasadas mas que se propões a serem profissionais e que buscam respaldo em elementos técnicos  para elogiar ou detonar músicas a partir do beat, da levada, da letra, da produção musical, da produção audiovisual (em videoclipes), da mixagem e até mesmo da masterização.

                Ao mesmo tempo, diversas falas inusitadas chamam a atenção positivamente, como análises de outros MC’s, DJ’s, produtores musicais, intelectuais do movimento Hip Hop, empresários, militantes e até mesmo de pessoas que acompanham a cena de forma intensa mesmo que não trabalhem ou produzam dentro do Hip Hop. Afinal de contas: a opinião dessas pessoas acerca de novos trabalhos é realmente relevante? Ou: existem pessoas certas que podem comentar esses trabalhos e outras não? Ou ainda: o que faz uma opinião ser construtiva dentro de um debate sobre rap?

                Não há respostas definitivas para essas perguntas, inclusive pelo fato da cultura Hip Hop abrigar pessoas com diferentes histórias de vida e formações. Mas pode-se arriscar uma reflexão ou duas sobre o tema.

Reflexões sobre Inteligência

                Para embasar a minha resposta, vou recuperar algumas reflexões do biólogo e psicólogo suíço Jean Piaget. Sendo hoje uma das grandes referências ao se pensar Psicologia do Desenvolvimento e Pedagogia, Piaget viveu entre 1896 e 1980, tendo dedicado grande parte de sua vida a estudos com crianças onde estudou seu desenvolvimento delas a sua Inteligência.

                Para Piaget inteligência não significa possuir muitos conhecimentos sobre as coisas, mas sim usar esses conhecimentos para se adaptar ao ambiente e resolver problemas, assim como ser capaz de se renovar a partir de novas experiências. Para o autor, a construção da inteligência se dá em quatro etapas.

                A etapa 1 acontece quando a criança acaba de nascer: na medida em que ela possui poucas experiências de vida, ela lida com o mundo ao redor a partir de comportamentos que com os quais ela já nasceu e a partir disso começa a registrar informações importantes mas ainda de forma bem simples. Esse registro acontece através de condicionamentos como: “escutar minha mãe cantando me deixa feliz” ou “colocar meu dedo na tomada dói”.

                Na etapa 2, a criança aprende a falar. A principal vantagem de se comunicar é conseguir falar sobre algo que não está presente: a criança não precisa mais estar vendo seus pais para falar sobre eles, por exemplo. A partir da linguagem a criança consegue estabelecer relações entre coisas que acontecem, tanto pensamentos verdadeiros (“sempre que aperto o botão na parede, a luz de casa acende ou apaga”) quanto pensamentos faltos (“a noite é uma grande nuvem negra que cobre o céu na hora de dormir”). Uma das limitações dessa etapa é a dependência de adultos que ajudem a criança a desenvolver seu pensamento.

                A etapa 3 começa, para Piaget, em crianças que passam a frequentar as escolas e lá aprendem conhecimentos mais racionais e com lógica. Assim, se tornam capazes de entender os fenômenos a partir de suas partes (“um carro anda porque possui uma bateria que produz energia e as envia para as rodas, que o fazem se mover”: nesse caso o carro é compreendido como um conjunto de peças que juntas formam o objeto Carro) e criar operações lógicas e matemáticas. Uma das limitações nesse período é a “concretude” do pensamento, ou seja, de que por mais que o pensamento seja lógico e racional, ele só acontece quando a criança consegue tocar ou mexer nos objetos (por exemplo: ela faz diversas contas, mas apenas contando nos dedinhos).

                A etapa 4 ocorre quando o jovem entra na adolescência. A grande conquista desse período para o pensamento é a possibilidade de entender os fenômenos a partir de um sistema explicativo: no exemplo do carro, que a criança entendia como um objeto construído através de várias partes, agora o adolescente pode refletir sobre ele a partir da História dos Automóveis, a partir da política de transportes no Brasil, etc, ou seja a partir de sistemas explicativos. É também nessa fase que o adolescente consegue pensar de forma mais livre e crítica sobre aquilo que acontece ao seu redor e pensar em maneiras de mudar essa realidade.

                Após o estudo com crianças, Piaget passou a estudar adultos e idosos e chegou à conclusão de que a aprendizagem acontece em toda vida: antigos conhecimentos são renovados e reconstruídos muitas vezes e novas aprendizagens acontecem. E nessas novas aprendizagens, o autor entende que o processo de construção de conhecimento é o mesmo do vivido pelas crianças, ou seja: a cada conhecimento completamente novo que adquirimos passamos pelas etapas 1, 2, 3 e 4.

                Em outras palavras: sempre que quero obter um novo conhecimento ou vivo uma nova experiência, eu inicialmente vivo isso com o meu corpo e percebo como meus ouvidos, olhos, nariz, boca e pele reagem, sentindo se gosto ou não daquilo. Depois começo a me aprofundar mais naquele assunto e consigo falar e pensar sobre ele, mesmo que nem tudo que eu fale ou pense faça muito sentido. Então começo a ter uma visão mais aprofundada e conseguir que aquele assunto pode ser dividido em várias partes. Por fim, consigo ter uma visão mais ampla e passo a analisar aquele conteúdo de forma crítica e, eventualmente, posso criar coisas que envolvam aquele conhecimento.

                Pensando quando escutamos um som que não conhecíamos antes, algo parecido acontece: de início sentimos se a música está agradando ou não e o que ela nos faz sentir. Na sequência vamos buscar pensar mais sobre isso e ouvimos a música novamente prestando atenção na letra, levada, beat e produção musical. Por fim, após ouvir algumas vezes, passamos a pensar naquela música a partir de outros elementos como a história daquele MC, outras músicas parecidas, etc.

                É importante lembrar também que para Piaget os pensamentos de cada uma das etapas não são melhores ou piores do que os das outras etapas, muito menos que pessoas que pensam de uma maneira mais complexa são melhores do que quem pensa de uma maneira menos complexa. Para o autor trata-se de entender apenas que a construção do pensamento sobre as coisas seguem uma série de etapas onde se torna cada vez mais amplo.

O que tudo isso tem a ver com comentar rap?

                Tem a ver com entender que os comentários sobre novos trabalhos são diferentes entre si. E isso fica cada vez mais nítido tendo em vista o que foi falado até aqui. Existem muitos comentários que refletem apenas o gosto do autor (“gosto” vs. “não gosto”). Outros mostram que o autor pensou um pouco no assunto mas em muitas vezes é apenas uma reprodução do que outras pessoas disseram. Outros ainda mostram análises realmente mais amplas e que trazem aspectos técnicos do trabalho que se está analisando. Por fim, há também comentários mais críticos e que analisam o trabalho em questão partindo de outras perspectivas e que comparam a obra com outras, com outros artistas, outros gêneros musicais e/ou que trazem uma abordagem histórica.

                Se esses comentários são tão diferentes, porque em muitas situações pessoas que estão chegando agora na cena se sentem confortáveis para dar opiniões como se fossem opiniões críticas? Em outra oportunidade podemos aprofundar isso, mas é fato que vivemos hoje em uma sociedade que valoriza o ego das pessoas e suas conquistas individuais de forma que se torna quase que uma obrigação ser produtivo e “deixar sua marca no mundo”, “lacrar”, “mitar” – o que não deixa de ser um reflexo do capitalismo que vivemos hoje em dia e do modelo norte-americano de vida.

                Ainda assim, a partir de cada comentário fica visível qual papel seu autor ocupa no movimento. E não se trata de ser um profissional da área (MC, DJ, Produtor Musical, etc), muito menos de se ter um diploma universitário! Isso mostra apenas o quanto cada pessoa escutou rap e pensou sobre isso.

                Partindo das reflexões de Piaget podemos pensar que todo comentário que foi escrito com o intuito de criar um diálogo é construtivo tanto para a cena quanto para seu próprio autor. Para o autor, quando ele comenta, além de querer testar se o que está pensando é verdadeiro ou não (o que promove um avanço para seu conhecimento), busca também através disso socializar e buscar pessoas que pensam como ele. Para a cena, não deixa de ser uma maneira de verificar se o que nós dizemos em nome do Hip Hop ainda reflete o que as pessoas falam e fazem mas também, em uma interação construtiva, aprender a receber e instruir esse novo público. Ou seja: quando olhamos para a galera nova comentando um novo trabalho, podemos ver o que essa galera está pensando e prestando atenção, e também refletir sobre o que podemos fazer para melhorar a cena e como agir para colocar os valores que nós defendemos em prática.


                Então podemos tirar dessa reflexão que muito mais do que punir essa galera jovem dizendo que eles se acham muito, são sem noção e que estão esvaziando a cena, podemos entender que são pessoas que estão chegando agora, não tem as mesmas vivências que nós e que nos cabe pensar em maneiras de ajudar e facilitar seu amadurecimento profissional e/ou pessoal.