- por Arthur Venturi Vasen
Em
muitas rodas de conversa sobre rap, principalmente com quem busca, à sua
maneira, promover o movimento e a cultura Hip Hop, surgem conversas sobre a
nova geração do rap nacional e do peso dela na cena. Para alguns, é essa
geração que está conseguindo botar o rap de volta nas grandes mídias e no tão
falado hype, trazendo dinheiro e oportunidades reais de trabalho para diversos
rappers, produtores musicais, beatmakers e empreendedores da quebrada. Para
outros, essa geração marcada pelo trap, pelo consumo de codeína e por rimas
esvaziadas (ainda que com uma técnica avançada) tem banalizado o Hip Hop e é
vista como destruidora da caminhada construída até então por MC’s e DJ’s que
começaram sua carreira nos anos 2000, 90 e até mesmo 80.
Chama
atenção que apesar de nós, que defendemos a cultura e o movimento, sempre
dizermos como o sistema corrompe as pessoas e dificulta a felicidade delas,
especialmente apontando diversos tipos de discriminação e do próprio
capitalismo como raiz desse mal, esquecemos
de pensar nos atuais problemas sociais, em alguns momentos pensando e agindo
como se vivêssemos ainda nos anos 1990.
Dessa
forma esse texto não tem o objetivo de glorificar nem abominar a nova geração
de MC’s, produtores e público do rap, e sim pensar de maneira crítica umas das
compreensões possíveis sobre o atual momento da sociedade que vivemos e como
essa compreensão é chave para compreender as novas maneiras de consumir e
produzir produtos culturais, entre eles aqueles relacionados ao movimento e à
cultura Hip Hop.
Uma Sociedade
Maníaco-Depressiva
Na
Psicologia Social, especialmente de 5 anos para cá, muitos pensadores afirmam
que a sociedade hoje se comporta de maneira bipolar ou maníaco-depressiva.
O que isso quer dizer? Que em determinados momentos vivemos em sociedade de
maneira depressiva, já logo mudamos para uma maneira maníaca, e logo voltamos
para a depressiva, variando entre esses dois funcionamentos de forma rápida e
muitas vezes sem percebermos.
De
acordo com a “bíblia” da Psiquiatria, o Manual
de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais que hoje está em sua
quinta edição (DSM-V), quando se fala sobre Depressão se está falando sobre pessoas cujos comportamentos podem
incluir: humor deprimido na maior parte do dia ou quase todos os dias (sensação
de tristeza, de vazio ou falta de esperança); diminuição de interesse ou prazer
em todas ou quase todas as atividades na maior parte do dia; perda ou ganho de
peso (ou de apetite) sem que a pessoa esteja fazendo uma dieta específica;
insônia ou excesso de sono; agitação ou pouca vontade de se mover; cansaço e
sensação de “perda de energia”; sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva
ou sem motivo quase todos os dias; pouca capacidade de pensar, se concentrar e
decidir coisas quase todos os dias; pensamentos recorrentes de morte e
pensamentos suicidas.
Ainda
de acordo com o DSM-V, a Mania pode
ser entendida em pessoas que vivem a seguinte realidade: autoestima inflada ou
grandiosidade; pouca necessidade de dormir; falar mais do que o normal;
sensação de que os pensamentos estão muito acelerados; sensação de se estar
muito distraído; aumento de atividades específicas (no trabalho, na escola, no
sexo ou na vida social); sensação do corpo estar muito agitado; envolvimento em
atividades que podem levar a consequências dolorosas (surtos desenfreados de
compras, atos sexuais que são socialmente considerados inadequados,
investimentos financeiros que não fazem sentido). Dessa maneira, quando falamos
sobre bipolaridade ou transtorno maníaco-depressivo, estamos
falando de pessoas que vivem a mudança entre estados depressivos e estados
maníacos.
Vale
lembrar que quando falamos sobre Depressão, Mania e Bipolaridade estamos
falando sobre transtornos mentais. E todos os transtornos mentais são resultado
de uma bagagem genética (que cada um herdou de seus pais biológicos) que é
ativada por vivências ao longo da vida e que outros aspectos e situações
sociais e culturais influenciam nisso. Também vale lembrar que esses
diagnósticos são objetos de trabalho da Psicologia, da Psiquiatria e que esses
profissionais é que estudaram e treinaram para fazer bons diagnósticos –
lembrete que vale a pena ser comentado para que a gente não banalize as doenças
mentais (em comentários do tipo “hoje acordei deprimido”) desmerecendo assim
pessoas que vivenciam todos os dias sofrimentos reais e intensos.
Mas
voltando ao assunto: o que significa dizer que a sociedade em que vivemos é
maníaco-depressiva? Isso veio da observação de muitos psicólogos e psiquiatras
que trabalham tanto no setor público quanto privado que perceberam nos
pacientes, nos colegas próximos e em si mesmos uma tendência muito forte de
comportamentos que lembram muito esses que comentamos acima de depressão e
mania. Em certos momentos, vemos os outros e a nós mesmo com poucas
expectativas sobre o futuro, com pouca energia para levar as atividades do dia,
descrentes da política, descrentes das religiões, descrentes no funcionamento
da sociedade e as vezes até mesmo com baixas expectativas em relação ao amor e
à vida afetiva. Em outros momentos, estamos super agitados, falando muito,
empolgados com algo que aconteceu, vamos no rolê e curtimos até dar “PT”,
bebemos muito, fumamos muito, rimos muito e nos aventuramos em muitas coisas
perigosas: sexo em público, mandar áudio na madrugada para um(a) ex e sentimos
que estamos ligados no 220.
Para a Psicologia isso é resultado de toda uma
estruturação da sociedade e de como as pessoas reagem a isso. A partir da globalização,
do desenvolvimento de novas tecnologias, mídias sociais e de um capitalismo
frenético que a cada oportunidade busca tirar proveito vivemos hoje em uma
época de mudanças drásticas e rápidas em diversas vivências sociais: no
trabalho, no amor, nas amizades, na família e no sexo. Como se programar para o
futuro se cada vez mais temos certeza de que não conseguimos prever o dia de
amanhã? Mais do que isso, vivemos especificamente hoje no Brasil uma época de
crise econômica, corrupção política, altas taxas de desemprego, números
alarmantes de violência policial, estatísticas assustadoras sobre feminicídio,
assassinato de pessoas LGBT’s e vemos discursos e posturas cada vez mais
conservadores representados principalmente pelos líderes e fiéis de Igrejas
evangélicas e as propostas absurdamente retrógradas e conservadoras de Jair
Bolsonaro e de seu público. Se já é difícil se programar em relação ao futuro
em um mundo cheio de mudanças, como fica isso quando, além de tudo, conseguimos
apenas pensar que o futuro é catastrófico e terá consequências negativas e
absurdas para todos e para nós?
Na
Psicologia sabemos que uma das principais causas da depressão é a percepção de
que o mundo é terrível, catastrófico e de que não é possível mudá-lo, ou que o
sujeito sente não ter qualquer habilidade para modificar sua vida. A partir
disso o corpo reage sentindo-se para baixo, sem energias e forças para levar
nem mais um dia.
Enquanto
muitas pessoas vivem de maneira depressiva, outras desenvolvem ferramentas para
evitar a depressão. Uma das saídas é “ignorar” os problemas, deixar de pensar
no futuro e pensar apenas no presente, vivendo ao máximo, focando todas as
energias em uma atividade específica, agindo até mesmo sem se preocupar com os
outros. Até que essa sensação passa e a pessoa se pega presa novamente em seus
conflitos, dilemas e problemas cotidianos. Por conta disso: sociedade
maníaco-depressiva.
O que isso tem a ver
com rap?
Quando se discute sobre o
esvaziamento e perda de sentido no rap e no movimento Hip Hop, as falas
normalmente se referem à nova geração que tem chegado cada vez mais no
movimento. Muitas fãs de artistas dos coletivos Damassa Clan, 1 Kilo e
que proclamam rappers como BK, Djonga, Baco Exu do Blues, entre outros. Muitos que fazem piadas no grupo
da ODB, Rap Crú e Rap É Minha Vida, algumas delas bem
deselegantes. Outros que quando tem sua postura cobrada alegam ser “apenas
opinião” e que “não deve nada a ninguém”. Outros ainda falando abertamente
sobre o consumo de lean/codeína e as tais Sprites Roxas.
Para
quem acostumou os ouvidos ao gangsta nacional dos anos 90, com fortes mensagens
contra o uso de drogas, com a solidariedade na quebrada, a cobrança do proceder
e que acredita fielmente que “rap é
compromisso, não é viajem” o choque vem na hora.
Porém,
vamos retormar o que falávamos sobre sociedade maníaco-depressiva. Na prática,
qual a realidade onde os jovens de hoje vivem e estão crescendo? Uma sociedade
que não permite se pensar sobre o futuro, onde não se pode confiar em ninguém e
onde a própria vida as vezes perde sentido.
Não
a toa um dos grupo ligados ao trap que mais tem feito sucesso na cena
underground é a dupla $uicideBoy$ (“garotos suicidas”). No single “Kill Yourself (Part III)”
(“Mate-se” ), que hoje bate quase 2
milhões de visualizações, o primeiro conjunto de versos é explícito:
“Eles me imaginam como um filha da puta morto, mas eu sou um filho da puta que seja estar morto/ (...) Fumo um cigarro enquanto lido com a minha depressão/ Olhar para luzes fluorescentes violeta me deixam violento/ Estou tentando tirar o máximo que consigo antes que eu morra de overdose/ Minhas costelas não são nada além de uma caixa vazia/ Tenho um buraco negro no meu peito”.
Também não é a toa que mesmo tendo sido acusado de uma série de acusações de agressão física contra sua ex-namorada (o que poderia atrapalhara identificação do público com seu trabalho), “Jocelyn Flores” do rapper XXXTENTATION alcança hoje a marca de 75 milhões de visualizações: uma música melancólica composta pelo rapper que retrata a história de Jocelyn Flores, uma mulher com quem teve um caso no passado e posteriormente cometeu suicídio.
Como falamos, a alternativa à depressão são comportamentos maníacos: desenfreados, eufóricos e arriscados. E nesse sentido, o uso frequente de recursos como speedflow não é a toa. De uma certa maneira mostra uma agitação tanto por parte de MC’s e DJ’s quanto do próprio público. O mesmo vale para as músicas que apresentam uma média de BPM cada vez mais alta ano após anos.
Essa alternância entre agitação e desânimo é muito bem representada pela imagem de Kurt Cobain que cada vez mais voltou a ser citado nas letras de trap e homenageado em diversas linhas produzidas no Brasil e na gringa. Nascido em 1967, Kurt foi o vocalista do grupo grunge Nirvana.
O grunge em si
foi um subgênero do rock que teve início no final dos anos 90. Marcado por
letras ora melancólicas e profundas, ora por gritos guturais falando sobre
relações amorosas, sexo e críticas ácidas à sociedade, foi responsável pela
aparição de diversos grupos e cantores ouvidos até hoje como Pearl Jam, Alice in Chains, Hole, Stone Temple Pilots, entre outros.
Kurt Cobain, dentro disso, foi um dos
cantores mais emblemáticos do grunge. Não apenas pelo alcance midiático do Nirvana, mas por sua própria
personalidade. Destruindo guitarras e amplificadores nos shows, fazendo uso de
diversas drogas, tirando fotos armado e escrevendo letras ácidas e críticas, Kurt era visto como um jovem rebelde
que mesmo dizendo não ter qualquer perspectiva de futuro, buscava aproveitar os
momentos de sua vida. Seu suicídio em 1994, com 27 anos de idade, marcou a
música, o rock e o mundo como um todo. Também não causa espanto muitos
psiquiatras hoje discutirem sobre o que causou a morte do cantor, muitos
defendendo justamente um diagnósticos de transtorno maníaco-depressivo (leia AQUI).
Então... Estamos perdidos?
Não
necessariamente. Apesar do presente artigo ter focado em casos mais extremos,
existem muitos jovens e muitos fãs de trap que não agem dessa maneira. E mesmo
alguns rappers, tidos como referências no subgênero tem passado a se apresentar
contrários ao consumo de codeína, especialmente com a morte de Lil Peep em novembro do ano passado,
com apenas 21 anos, onde a suspeita-se que tenha sido fruto de overdose.
Raffa Moreira, por exemplo, twittou em
16 de novembro do ano passado: “Eu só
promovo lean pelo hype. Só comprei essa merda duas vezes e não vou comprar
nunca mais. Em breve vou dropar um pronunciamento no meu Youtube alertando
sobre drogas. Eu amo meus fãs, R.I.P. Lil Peep”.
Lil Pump, um dos MC’s mais ouvidos no
trap, sempre fez apologias ao consumo recreativo do remédio controlado para
ansiedade, Xanax. Em seu Instagram, o rapper disse que agora em 2018 irá
largar o Xanax.
Até
mesmo o rei do trap, Gucci Mane,
quando saiu da prisão em 2016, onde cumpriu pena por consumo e porte de
remédios controlados e drogas ilícitas, cedeu diversas entrevistas dizendo que
a partir daquele momento focaria apenas em seu trabalho, abandonando o consumo
de quaisquer drogas e repensando suas posturas em diversos trabalhos, sendo um
dos mais marcantes deles “Addicted” (“Viciado”):
“Quando eu estava afundado nas drogas, eu
falava diferente/ Eu bebia lean quase todos os dias que nem doido, eu estava
fora de mim/ Olá meu nome é Gucci Mane, eu sou viciado em tudo/ Vadias, carros
correndo, maconha e prometazina [remédio controlado]/ (...) correntes de diamentes, rifles de assalto, clubes de
strip-tease e apostas”
Em
relação à sociedade maníaco-depressiva em que vivemos, pode ser que as mudanças
reais sejam feitas apenas no plano da política e das políticas públicas, da
economia e da comunicação. Porém ficam algumas questões: Além de criticar, o que estamos fazendo para melhorar a realidade dessa
juventude? Se essa juventude mostra sinais de que falhamos, como podemos fazer
em nosso dia-a-dia para melhor a qualidade de vida desses jovens e criar um
futuro melhor para as próximas gerações que virão?
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