- por Eduardo Camargo
2017, o ano dos líricos. Dito por João, o Alquimista, na música "Dano InternoII", e popularizado com consequências ambivalentes por Baco Exu do Blues em "Poetas no Topo 2". 8 anos de "Pra Quem Já Mordeu Cachorro Por Comida Até Que Eu Cheguei Longe" e 7 de "Emicídio". Depois de dar o primeiro passo - pensando em lançamentos, já que era uma figura muito conhecida no meio das batalhas - com um debut que tornaria-se um clássico do rap nacional, Emicida se consolida com sua segunda mixtape. Punchline e referência parecem ser o mote hoje em dia, e se o são, é porque nessa época ele já estava fazendo, e de forma muito mais potente do que alguns MCs contemporâneos pretendem. E é sobre MCs prepotentes e que desconhecem o hip hop que "Emicídio" também se trata, como é claro na música que intitula a obra.
“Esse é o ano
lírico, cês tão fudido”, uma linha que buscava
enfatizar um certo padrão de qualidade que vinha se instaurando no cenário -
sejam os jogos de palavra de BK, a métrica inventiva de Sant, o uso de
metáforas por Vitor Xamã - na Nova Escola, algo antes corriqueiro no
underground dos anos 2000 mas que parecia haver sido perdido no rap mainstream
dessa década, acabou por se tornar um estigma. Se esse é o ano em que grande
parte da população se tornou crítica de arte depois da polêmica do Queermuseu e
da performance do MAM, o mesmo ocorreu no público do rap, proliferando uma
série de comentários que denotava um juízo de valor de características da
música. Comentários como “gostei, mas o flow poderia ser melhor”, “a rima é
muito simples”, entre outros, tornou-se comum, muitas vezes partindo de
julgamentos superficiais. As referências se tornaram um requisito. O lirismo,
por fim, foi associado com uma escrita técnica, que recorre à recursos de
linguagem criativos - a metáfora, a antítese, hipérboles e punchlines - e
desenvolve esquemas de rimas não usuais.
Porém, na sua
concepção dentro da poesia, o gênero lírico é aquele que se refere à expressão subjetiva do poeta. Nascida na Grécia,
existia em paralelo com a poesia dramática,
a que referia-se às tragédias como "Édipo
Rei", e a poesia épica, que
contava com narrativas como as da "Ilíada" e "Odisseia". Recebia essa denominação
específica porque era acompanhada pela lira, e mais tarde ganharia a conotação
também de ser o mundo do eu-lírico, o
detentor da perspectiva que narra o poema. No Romantismo esse gênero ganhou
novamente destaque, sendo uma expressão direta da subjetividade do
poeta-criador. Não necessariamente relacionada a um virtuosismo, ela era
pensada na sua efetividade quando conseguia alcançar o leitor a partir da
construção de um sentimento individual.
Era como uma espécie de síntese do próprio processo artístico e o fator da
comunicação sendo levado em conta: o poeta com uma boa lírica seria aquele
capaz construir e transpor o seu mundo próprio, complexo, em um dado universal
que comunicaria-se com o leitor. Neste ensaio, a busca é demonstrar como essas
duas formas de lirismo - a de conceituação poética e aquela que surgiu pelo
público do rap em 2017 - que abundam como um certificado de qualidade estão
ambas presentes na mixtape que abre a década: "Emicídio". Essas duas noções, coincidentemente, dialogam ao longo da
obra e são o que conferem o seu valor ambíguo e nuançado, fruto de uma
construção poética que já pode ser vista como modelo para os dias de hoje.
Falar de uma
figura como o Emicida é uma responsabilidade. Ele já ocupa para história do rap
um lugar que, apesar de não ser igual, tem chegado perto da importância dos
grandes visionários e direcionadores do rap brasileiro - os Racionais. É claro
que essa história não é construída apenas em cima do grupo, grandes figuras
clássicas tem suma importância, como Ndee Naldinho, Thaíde e DJ Hum, RZO,
Facção Central, MV Bill, SNJ, Sabotage, Xis, Black Alien, Quinto Andar e a
carreira solo de seus integrantes, e uma série de outras personagens que tem
contribuído para essa formação. Mas quando se fala em Racionais, sabemos que
eles são singulares, e acima de tudo, um marco em eterna mutação. Emicida se
tornou o mesmo para os seus contemporâneos.
Como
evidenciado no nosso editorial, as comparações (já chegaram ao nível de
Jay-Z). Agora, se a Laboratório
Fantasma não é a Roc-A-Fella do Brasil, é porque
uma série de fatores nos distancia em relação à situação socioeconômica, além
de que não existe uma necessidade dessa comparação eterna - geralmente com um
caráter pejorativo ao Brasil - entre o nosso país e a gringa. Nossa cultura é
suficientemente rica e capaz de gerar os seus próprios artistas, como o nosso
meio musical tem evidenciado tanto ao longo do século XX e até os dias de hoje.
Mas vale ressaltar que sim, Emicida é responsável pela profissionalização do
rap aqui. Se a Cosa Nostra era uma iniciativa precursora, a Laboratório
Fantasma também o seria, ainda garantindo a distribuição pela Sony. Podemos
dizer que isso abriu portas para um fenômeno que tem se tornado mais recente
aqui: a distribuição de artistas do rap nacional pela ONErpm.
Essa
perspectiva, de desvencilhar o rap (e os rappers) da miséria, é um dos grandes
motivos recorrentes de "Emicídio".
Apesar desse imaginário ainda popular a cabeça do público - como fica claro com
a frase, já transformada em meme, de “fortalece aí a favela” - em 2010 Leandro
deixava claro que havia uma grande diferença entre colher os frutos do trabalho
no rap e ser um MC que desconhece os princípios do hip hop. Essa é a tônica que
prevalece na primeira parte do álbum. É possível pensarmos "Emicídio", de certa
forma, em um Lado A e um Lado B. As primeiras oito músicas, junto com o single "Avua Besouro", que parece estar como
penúltima música para pontuar novamente essa visão, no geral tratam do rap como
uma ferramenta de emancipação política,
potente, capaz de não só se libertar de imposições de um sistema essencialmente
eurocêntrico, mas também a capacidade se utilizar desse sistema para ascender
socialmente. Este início do álbum é aquele que reside no lirismo segundo o
deslocamento do público do rap - aquele que enfatiza uma escrita com linhas de
peso, uma persona ambiciosa e que recorre a metáforas e maneiras inventivas de
rimar, como veremos mais à frente.
Já a segunda
parte, junto com a quinta faixa "Santo
Amaro da purificação", falam não do Emicida, do cenário do rap e do hip hop,
mas sim do Leandro. O vulgo que é adotado no rap sempre dota o MC de uma
persona, persona que muitas vezes carrega as crenças da pessoa que está por
trás dela, mas sempre há um distanciamento, uma forma diferente de levar essa
mensagem. A diferença entre o indivíduo e o rapper se tornam mais claras em MCs
como MF Doom, Eminem e o início da
carreira de Tyler The Creator.
Apesar do alterego ter sido introduzido no rap pelo Kool Keith através do projeto do Dr. Octagon, ele se tornaria popular nos Estados Unidos pelos
álbuns de Daniel Dumile, principalmente Madvillainy,
e ainda carecem projetos aqui no Brasil que tem uma operação consciente essa
ideia do alterego e da criação de personagens. Ainda sim, de forma consciente
ou não, Emicida parece brincar com isso em "Emicídio".
Esse segundo momento é aquele que se aproxima do lirismo segundo a poesia, a
materialização do seu mundo subjetivo. Mais do que se encaixar ou dominar o cenário,
é a expressão pessoal do rapper. Com isso, não buscamos estabelecer uma
dicotomia na sua maneira de escrever, mas sim entender como diferentes
tendências da sua escrita se materializam nas músicas e rimas.
"Velhos Amigos" é marcante nesse aspecto,
já que é justamente sobre o cotidiano que permeia amizades verdadeiras. Após
uma narrativa detalhada e contundente em "Rua
Augusta", que é como uma crônica sobre a prostituição, nós adentramos ainda
mais no universo pessoal de Emicida. "I
Love Quebrada" parece sintetizar esses dois pontos: é toda o conforto que
ele busca mas sem esquecer as suas raízes, o que realmente se relaciona com a
sua trajetória. Depois disso, teremos a sensação de uma boa relação amorosa, na
qual ele constrói uma imagem multifacetada de uma mulher forte. Visões sobre a
depressão, a relação nostálgica, alegre e por vezes distante da mãe, os
resquícios da depressão que surgem durante uma noite de cansaço (outro tema que
na contemporaneidade tem ganhado atenção, até no rap internacional), a inserção
do hip hop na infância na Zona Norte de São Paulo nos anos 90 e a alegria de
ser pai são todas temáticas que surgem após a consolidação dessa imagem forte,
convicta e que sabe que entrou no
jogo para mudá-lo que Emicida constrói no início da mixtape. Parece um momento
de introspecção e reflexão que vai surgindo junto com a celebração dos passos
promissores que a sua carreira estava tomando. De maneira parecida, Don L
tratou disso em "Caro Vapor/Vida Veneno
de Don L" em 2013, contando inclusive com um ótimo remix de "Beira de Piscina". Essa relação da vida
pessoal e a fama foram a força motriz do seu último álbum, lançado esse ano.
Assim como Joey Bada$$ (usou de uma estrutura de uma música romântica para
falar dos Estados Unidos e o racismo),
Don L parece fazer uma operação inversa em "Eu
Não Te Amo". Fala de maneira direta de desilusões na grande roda da máquina
do mercado da música, da sua capacidade de institucionalizar discursos,
gourmetizar artistas e de uma visão fria e distanciada desse jogo esquemático.
Se nessa música ele parte de metáforas, em "Fazia
Sentido" ele aprofunda ainda mais as diferenças entre o rap na sua época do "Costa a Costa" e como ele é atualmente. "Se
Num For Demais" e "Laje das Ilusões"
aludem, por fim, uma catarse pessoal e a superação dessa depressão
paulo.
Se na primeira
mixtape acabávamos com "Ooorra", na
qual Emicida reflete sobre as dificuldades que passou na vida, agora é a hora de mudança. Assim que
começamos "Emicídio", lançada a
pergunta no título da música, começamos com alguém falando de uma maneira que
parece parodiar a mentalidade do público. Essa fala evidencia esse julgamento
moral, e por fim, sabotador que alguns fãs tem com artistas que alcançam o
sucesso e ocupam espaço na mídia, como também foi o caso do MV Bill. Nas
primeiras 7 linhas Emicida é capaz de sintetizar a temática dessa primeira
parte do álbum:
Recorrente
nesses primeiros versos, fica clara a ideia de que ter vindo de origens
humildes não limita Emicida de ocupar espaços que antes lhe eram privados. Ele
vê que na verdade ocupar esses espaços é realizar algo novo e propicia novas
oportunidades para outras pessoas negras no Brasil. Ocupar ambientes onde não
só os ternos são pretos, como ele mesmo diz. A questão racial é outra constante
da obra, que é aprofundada na próxima música: "Cê Lá Faz Ideia". A música aborda como o racismo está contido não só
em expressões claras de ódio, mas é permeado por uma série de ações do dia a dia
que tem um valor cumulativo, como uma bomba relógio. Em um vídeo onde comentaa música,
ele fala que a música aborda o fato de que o racismo realmente só é
compreendido quando vivido.
As
próximas músicas são dois dos pontos altos do início do álbum. A primeira delas
é "Isso não pode se perder", mais
urgente ainda do que a época que foi lançada. Embasado em uma visão que parece
próxima a de Bambataa e da Zulu Nation, ele celebra a união realizada no hip
hop e destacada cada um dos seus elementos, além de apontar as contradições
para aqueles que entram no meio com fins puramente comerciais. A música tem um
dos bordões mais famosos do Emicida: “O rap salvou mais moleque que qualquer
projeto social”. Outro trecho, também muito conveniente para o rap
contemporâneo, que merece destaque é esse:
“Esse negócio de todo mundo ser homem de negócio
Serviu pros ego inflar e camuflar o ócio
"Santo Amaro da purificação" já citada
anteriormente, é um dos instrumentais mais bem desenvolvidos do projeto. Inicia
com um sample de uma oração e o som de pessoas rezando no fundo, depois
acompanhada por tambores no fundo de uma melodia de teclados e guitarras, além
de ser outro momento de uma declaração extremamente pessoal. O que irei
assinalar, contudo, é outro fato. A construção de rima que ele empreende em um
certo trecho e é constante nos versos da mixtape:
“E ainda que eu ande no vale da
sombra da morte
Quando o martelo
bate, quando falha a sorte
Quando seca o pote, quando some o norte”
Partindo de uma multisilábica, ele a usa
também como uma rima interna na última linha, o que dá uma dinâmica maior pra
sua levada. Além disso, Emicida geralmente usa uma multisilábica que se alterna
junto com a rima que o mote principal, nesse caso são aquelas formas pelas
sílabas “or” e “te”. Não é nenhum esquema complexo, mas parece complementar as
cadências naturais e a entrega espontânea do MC, que em muitos momentos até
remete estar estabelecendo um diálogo com o ouvinte. Outro momento que a
construção das rimas ganha destaque é no segundo verso de "I Love Quebrada", com
todas as terminações das linhas no mesmo fonema: ana/ama. Outra curiosidade,
agora no conteúdo, é que a música tem uma referência a Sun Tzu, autor de A Arte da Guerra que esse ano virou um
clichê das referências de rap, tal como o realizador Quentin Tarantino. O mesmo
procedimento do uso de um só fonema é o motivo “ona” na próxima música: "Eu Gosto Dela". Apesar do uso de aumentativos,
eles se tornam menos óbvios e mais interessantes com o jogo de antíteses que
ele empreende na construção dessa figura.
O que faz, por fim, de Emicídio tão interessante é essa justaposição de uma
invencibilidade, estabelecida em um primeiro momento no “lirismo” do público do
rap, e depois a demonstração de uma fraqueza e dúvida interna, muito em
retratadas em "Só Mais Uma Noite", e
sonhos que muitas vezes são mais simples do que imaginamos, como o prazer de
poder orgulhar uma mãe, manifestações de cunho pessoal do eu-lírico. Essa
dualidade ambígua confere, para além de tudo, um fator humano pro Emicida, além
de gerar uma quebra de expectativa: após um início forte daqueles, não
esperamos lidar com essas confissões pessoais. E por serem surpreendentes, são
aindas mais impactantes. Parece que é só após se levantar perante todo o
cenário do rap que ele pode se abrir. Traçando um último paralelo, em uma entrevista recente, Jay-Z diz que a coisa mais forte que um homem pode
fazer é chorar. Expor os sentimentos e estar vulnerável para o mundo. Essa
declaração, relacionada ao seu último álbum e a música "Song Cry" cabe nesse caso.
Buscamos tentar evidenciar a coexistência
dessas duas formas de “lirismo”em "Emicídio" da maneira que refletem ainda hoje no rap. Um ponto que merece ser comentado
também é o uso de referências, porém nesse sentido ele se aproxima mais do
Amiri, utilizando figuras mais conhecidas do imaginário pra formulação de
metáforas, como é o caso do Sr. Popo do Dragon Ball Z. Acontecem, contudo,
algumas com um caráter mais desconhecido do público em geral, como no caso de
Hattori Hanzo. De qualquer maneira, é notável que o mote do rap atual
dificilmente consegue ser tão bem executado pelos MCs da Nova Escola como ele
foi aqui. Talvez o melhor da escrita do Emicida seja no momento em que essas duas
forças estão em equilíbrio, como "Beira de
Piscina" consegue sintetizar ao final. Depois dos “ataques” e da
autoafirmação do início, das dúvidas e desabafos do desenvolvimento, a mixtape
fecha com uma nota positiva, comemorativa, de maneira semelhante como "Roteiro
Pra Ainouz vol.3" acaba, uma superação pessoal, nada além de visionário esse
último trecho:
“Tô dando a chance de verem como
nasce um império
Com o brilho dos diamante que eles tanto diz
Multiplicado dez mil vez no olhar feliz
Das minha menina, sente o clima
Eu posso comprar Hennessy, mas prefiro Tubaína
Aos que apontam, trago a resposta mais louca:
Não diz que eu sou marrento não, trampa mais e melhor que eu calo a boca
Deixa eu devolver o orgulho do gueto
E dar outro sentido pra frase: ‘Tinha que ser preto’”
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